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Família sem ressalvas, uma conquista social alcançada nos tribunais
Tudo começou em um curso de teatro há quase dez anos, em Brasília. A forte afinidade entre as psicólogas Isabel Amora e Juliana Brandão rapidamente evoluiu, e logo elas estavam morando juntas. Em pouco tempo surgiu a ideia de se casar e, em 2013, num momento em que recentes decisões judiciais haviam mudado radicalmente o cenário, elas oficializaram a união.
A possibilidade do casamento civil entre homoafetivos só foi possível a partir de julgamentos emblemáticos, tanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto no Supremo Tribunal Federal (STF). Em julgamento inédito concluído em 25 de outubro de 2011, a Quarta Turma do STJ deu provimento a um recurso especial para declarar que nenhum dispositivo do Código Civil veda expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo (o processo tramitou em segredo judicial).
O caso julgado começou em Porto Alegre, onde duas mulheres tiveram o pedido para se casar negado na Justiça. A sentença julgou improcedente o pedido de habilitação, por entender que o casamento, tal como disciplinado pelo Código Civil de 2002, apenas seria possível entre homem e mulher. Anteriormente, elas já haviam recebido a negativa de dois cartórios civis.
O entendimento foi mantido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o que provocou o recurso ao STJ. O relator, ministro Luis Felipe Salomão, lembrou em seu voto que a missão do tribunal é uniformizar o direito infraconstitucional, o que implica conferir à lei uma interpretação que seja constitucionalmente aceita.
Segundo Salomão, o acórdão contestado acionou os artigos 1.514, 1.535 e 1.565 do Código Civil, enfatizando as alusões aos termos “homem” e “mulher”, cuja união seria a única forma de constituição válida do casamento civil.
Para ele, “os mencionados dispositivos não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar”.
Proteção sem ressalvas
O ministro explicou que o artigo 226 da Constituição Federal, ao estabelecer que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, não faz ressalvas nem reservas quanto à forma de constituição dessa família. Segundo ele, por trás dessa proteção especial reside também a dignidade da pessoa humana, alçada, no texto constitucional, a fundamento da República.
“A concepção constitucional do casamento – diferentemente do que ocorria com os diplomas superados – deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade”, considerou o relator.
Para o ministro, com a transformação e a evolução da sociedade, necessariamente, também se transformam as instituições sociais, devendo mudar a análise jurídica desses fenômenos. “O pluralismo familiar engendrado pela Constituição – explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta corte quanto do STF – impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.”
Segundo Salomão, a igualdade e o tratamento isonômico “supõem o direito a ser diferente, o direito à autoafirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença”.
Direitos do cotidiano
Isabel conta que a decisão de se casar surgiu da vontade de marcar um momento especial do relacionamento, mas também da necessidade de garantir à companheira aqueles direitos em questões práticas da vida que, normalmente, apenas as pessoas da família têm.
“Nós já ouvimos muitas histórias tristes de separação, e também sobre casos de morte em que o outro fica desamparado porque uma das famílias não reconhece o cônjuge”, disse.
Sem o casamento, as restrições para participar da vida do outro são bem maiores. “Por exemplo, a Juliana não tem família aqui. Se ela ficasse doente, internada, sem ter casado eu não poderia acompanhá-la, por não ser da família. Se você não é da família, não pode tomar nenhuma decisão”, afirmou.
Democracia fortalecida
Hoje com a família ampliada pela chegada de Bernardo, de nove meses, as duas psicólogas se preocupam com a ausência de lei que reconheça o casamento, pois, ainda que tenham conseguido oficializar a união, elas temem o preconceito por não haver essa regulamentação. “Eu acho que o Legislativo deveria cumprir esse papel, mas já que não cumpre, é importante que a gente tenha esse direito assegurado por algum dos poderes”, disse Juliana.
Para o ministro Salomão, a intervenção do Judiciário nesses casos também é uma forma de fortalecimento da democracia, uma vez que “esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos”.
“Nesse cenário, em regra, é o Poder Judiciário – e não o Legislativo – que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias”, ressaltou.
Mais casamentos
Enquanto o número total de casamentos no Brasil caiu 2,3% em 2017 sobre o ano anterior, entre pessoas do mesmo sexo houve aumento de 10%. Os dados são das Estatísticas do Registro Civil divulgadas em outubro de 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A contribuição das mulheres para o aumento desse número foi significativa. Casamentos entre cônjuges do sexo feminino representaram cerca de 57,5% das uniões civis em 2017. O IBGE ainda mostrou que registros de uniões entre homens cresceram 3,7% e os casamentos entre cônjuges femininos cresceram 15,1%. Ao todo, houve 2.500 casamentos entre homens e 3.387 entre mulheres em 2017.
Proibido recusar
Em maio de 2011, os ministros do STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, reconheceram que a união estável de casais do mesmo sexo deveria ter o mesmo tratamento legal dado àquelas formadas por heteroafetivos. A decisão da Quarta Turma do STJ foi a primeira a tratar expressamente do casamento civil entre homoafetivos.
Com amparo nos precedentes do STF e do STJ, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em maio de 2013, aprovou a Resolução 175, que veda às autoridades a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Fonte: STJ