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Defensoria obtém decisão inédita que reconhece dano existencial e obriga agressor ao pagamento de indenização
Além dos danos existenciais, juíza também determina pagamento de indenização por danos morais, materiais e estéticos
A Defensoria Pública de SP obteve uma decisão judicial que reconheceu a existência de danos existenciais em uma situação decorrente de tentativa de feminicídio, determinando que o agressor pague à vítima uma indenização no valor de R$ 50 mil. Determinou, ainda, o pagamento de mais R$ 55 mil a título de indenizações por danos materiais, morais e estéticos.
Dano existencial é aquele que atinge o projeto de vida de uma pessoa, frustrando o seu direito à realização pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade. De acordo com o defensor público Júlio Camargo de Azevedo, a decisão chama a atenção por seu ineditismo ao aplicar a teoria do dano existencial a situações de violência doméstica e familiar contra a mulher.
O processo tramitou no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São José dos Campos/SP.
Entenda o caso
Segundo consta nos autos, Ana e Ricardo (nomes fictícios) pertenciam a núcleos familiares próximos e mantiveram um relacionamento, o que gerou em Ana a suspeita de estar grávida. Após comunicação sobre a possível gestação, Ricardo sugeriu por diversas vezes que Ana realizasse um aborto – o que sempre foi negado pela mulher.
Certo dia, Ricardo marcou um encontro com Ana e, depois de levá-la a um lugar ermo, desferiu diversos golpes contra sua cabeça, membros e corpo. Os golpes a fizeram ficar inconsciente, e os sentidos somente foram recobrados horas depois, quando foi encontrada por policiais militares e levada a um hospital – quando então foi constatado que Ana não estava, de fato, grávida.
Ana ficou internada em razão de múltiplas faturas (inclusive cranianas) e escoriações por todo o corpo. Como consequência deste fato, ela perdeu a mobilidade de um dos braços, perdeu parte da visão, além de ter diversas cicatrizes na cabeça, no rosto, nos braços, etc. Ela também passou a desenvolver transtornos psiquiátricos, além de constrangimentos constantes pela sua aparência após os fatos.
Na esfera criminal, Ricardo foi processado e condenado pelo crime de tentativa de feminicídio. A Defensoria Pública prestou assistência jurídica à vítima perante o Tribunal do Júri. Em razão da violência física, moral e psicológica, Ana procurou a Defensoria Pública para solicitar indenização pelos danos sofridos.
Danos existenciais
Conforme apontou na ação o defensor público Júlio Camargo de Azevedo, o ordenamento jurídico brasileiro garante proteção à vida, à saúde, à capacidade laboral, à personalidade e ao projeto existencial de vida. No caso em questão, esses direito “restaram fartamente violados, eis que, além de atentarem contra a vida de Ana, afetaram permanentemente sua saúde, além de inabilitá-la para gerir a própria subsistência sem o auxílio de sua mãe, advindo daí, portanto, o dever de indenizar”, pontuou.
“Ricardo frustrou o projeto de vida e o livre desenvolvimento da personalidade da Ana. A tentativa de homicídio causou-lhe sérias lesões da esfera existencial e prejudicou a expectativa de uma vida longa digna, sem violência e traumas. Dificilmente, portanto, conseguirá confiar e relacionar-se afetivamente com outras pessoas”, completou.
O defensor também pontuou os danos patrimoniais, morais e estéticos sofridos por Ana em razão do ocorrido, consignando o dever de indenizar do agressor.
“O seu cotidiano desenvolve-se em função de cirurgias, tratamentos médico-hospitalares, atendimento psiquiátricos visando a reabilitação da saúde e, em função da busca de reparação e justiça por meio de longo processo legal. Portanto, é manifesto que a crueldade de Ricardo transformou integralmente o projeto de vida de Ana, roubando-lhe o destino e o sentimento ‘do que poderia ter sido'”, afirmou o defensor.
Decisão
Na decisão, a juíza que analisou o caso reconheceu o dever de indenização por danos materiais, morais, estéticos e existenciais.
Sobre o dano existencial ou dano ao projeto de vida, a juíza definiu como sendo “espécie de dano imaterial que atinge a qualidade de vida do indivíduo, causando dificuldades ou, ainda, impossibilitando que este desempenhe atividades cotidianas, considerados o âmbito social, pessoal e profissional”.
Explicou, ainda, que não se confunde com dano moral: “enquanto este é configurado pela lesão a direitos que atingem a esfera da personalidade da pessoa humana (p. ex., intimidade, vida privada, honra e imagem), o dano existencial se consubstancia pela lesão a direitos que ferem a própria existência da pessoa, ou seja, a própria dignidade da pessoa humana, gerando assim o que se define como ‘vazio existencial'”.
No caso analisado, a juíza consignou que Ana foi submetida aos danos existenciais, “vez que não apenas perdeu a perspectiva de sua vida presente, pois as agressões foram bastantes a lhe fazer perder o sentido da própria vida, mas ainda lhe foi retirada qualquer perspectiva futura a curto e médio prazo, pois suas lesões cranianas lhe são impeditivos ao convívio social e interpessoal saudáveis”.
Assim, julgou estarem comprovados os elementos que caracterizam o dever de indenização por danos materiais (no valor de R$ 5 mil), danos estéticos (no valor de R$ 25 mil), danos morais (no valor de R$ 25 mil) e danos existenciais (no valor de R$ 50 mil).
Defensoria Pública - SP