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Aperfeiçoamento da gratuidade de Justiça demanda padronização e dados estruturados
As dificuldades e consequências do cumprimento da missão do poder público de ofertar acesso universal e integral à Justiça para a população, como previsto na Constituição Federal, representam desafios que estão sob a atenção do Conselho Nacional da Justiça (CNJ). Enquanto uma pesquisa para mensurar a concessão da gratuidade nos serviços jurídicos está em preparação e um grupo de trabalho criado há um ano lida com esse tema, o CNJ reuniu presencial e virtualmente, na quarta-feira (12/4), duas dezenas de magistrados, professores, estatísticos e representantes da advocacia para debate sobre o enfrentamento dos problemas que afetam as rotinas dos fóruns e das pessoas físicas e jurídicas que pleiteiam – ou gostariam de pleitear – seus direitos nos tribunais.
O Seminário Políticas Judiciárias de Melhoria do Regime de Gratuidade de Justiça, realizado no auditório da sede do CNJ, em Brasília (DF), serviu como oportunidade para a identificação das discrepâncias e para a busca de alternativas que garantam, efetivamente, o acesso dos brasileiros ao processo judicial. As palestras, transmitidas ao vivo pela internet para as mais de mil pessoas inscritas, trouxeram à tona, diversas vezes, um paradoxo da realidade brasileira: ao mesmo tempo em que o Poder Judiciário trabalha com sobrecarga de processos, grande parte da população brasileira não tem acesso aos serviços da Justiça e, pior, desconhece que pode dispor desses benefícios sem ter que pagar por isso, inclusive com assistência advocatícia.
Na abertura do seminário, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Villas Bôas Cueva destacou a complexidade do tema do evento. “A discussão sobre acesso à Justiça, custas judiciárias e assistência judiciária gratuita esbarra sempre em uma barreira quase invisível de demagogia e de conceitos confusos. ”, discursou. “Confunde-se, no Brasil, o acesso universal e integral com o subsídio à litigiosidade. A concessão indiscriminada da gratuidade à Justiça acaba resultando no uso oportunista e predatório do sistema da Justiça”, completou o ministro, que encerrou sua participação com um alerta. “Mas não se pode admitir que as pessoas não consigam ter o duplo grau de jurisdição garantido.”
Exceção e regra
Apesar de, no Brasil, a lei garantir ao indivíduo o atendimento judiciário gratuito, durante as palestras houve repetidas manifestações em defesa do aperfeiçoamento dos critérios de concessão do benefício. No entender do conselheiro do CNJ Richard Pae Kim, subcoordenador do grupo de trabalho que realiza estudos para avaliar e apresentar propostas de políticas judiciárias de ampliação do acesso à justiça, melhoria dos regimes de custas, taxas, despesas judiciais e gratuidade de justiça, a dispensa de arcar com as despesas processuais deve ser exceção, não regra. “Não se justifica atribuir aos contribuintes os custos de ação de pessoas que tenham grandes rendimentos, não é esse o espírito das normas constitucionais e das regras infraconstitucionais”, afirmou ele.
Também no ambiente acadêmico, há concordância quanto à distorção do significado, na prática, do amplo acesso aos serviços dos fóruns, tribunais e cartórios. “Há um número razoavelmente grande, cerca de 25%, de pessoas com baixa renda e baixa escolaridade que não sabem que poderiam acessar a justiça gratuita, e há uma parcela significativa de pessoas com renda mais elevada acessando a gratuidade da justiça”, avaliou a professora e pesquisadora associada do Insper Adriana Bertoluzzo. “É possível ajustar esse processo, um ajuste mais fino na forma de concessão, para que as pessoas com reais necessidades tenham esse acesso ao Poder Judiciário e para que os indivíduos que podem pagar façam o pagamento”, explicou a docente ao chamar a atenção para a importância e necessidade do uso de dados para orientar a tomada de decisões.
O Insper, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e o CNJ são parceiros na preparação de pesquisa sobre a concessão de gratuidade pelo Poder Judiciário brasileiro. Esse trabalho levará em conta universo de 28,355 milhões de processos que tramitaram entre janeiro de 2020 a janeiro de 2023, nas Justiças de primeiro grau, excluídos os juizados especiais, criminais, execuções judiciais e fiscais. A previsão é da apresentação de resultados em junho de 2023.
“As custas de uma empresa que pode alcançar renda bruta anual de quase R$ 5 milhões são pagas pelos demais contribuintes”, comentou Pae Kim ao se referir aos critérios de concessão da gratuidade. “Talvez fosse mais justo, em situações como essa, que houvesse o diferimento do pagamento de custas ao final”, defendeu. O também conselheiro do CNJ, Marcello Terto e Silva, concorda com a premência da busca de aperfeiçoamentos. “As soluções adequadas aos conflitos podem ocorrer de várias maneiras, não necessariamente por meio do processo judiciário, que é necessariamente um meio complexo, lento, caro e muito sofisticado para se resolver demandas que exigiriam soluções muito mais efetivas, rápidas e efetivas também quanto aos custos”, avaliou.
Lógica
Entre as propostas que os palestrantes expuseram durante o seminário, uma tem a ver com a necessidade de padronização para orientar os critérios de cobrança e de informação à população sobre os valores das taxas judiciárias adotados pelos tribunais estaduais. “Hoje, não existe uma lógica”, comentou a diretora executiva do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ), do CNJ, Gabriela Soares, que citou como referenciais de comparação os Produtos Internos Brutos (PIB) e os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) das unidades da federação. “Ao mesmo tempo em que vemos muita gente pedindo gratuidade, vemos valores muito caros sendo cobrados”, afirmou.
O DPJ é responsável pelo Relatório Justiça em Números. A rotina de busca por dados faz com que a equipe do departamento esteja acostumada com as consultas aos sites processuais dos tribunais, a coleta de dados sobre arrecadações com taxas e emolumentos. A equipe também se depara com as distorções e discrepâncias nos valores cobrados e nas custas mínimas e máximas. “É um trabalho de organizar o que não está organizado, não é simples fazer esse garimpo”, comentou Gabriela Soares, que sugere a adoção de um padrão nos sites dos tribunais a fim de permitir ao usuário dos serviços a fácil compreensão das informações e a comparação de valores. “Isso traria clareza, seria um avanço em relação à transparência.”
O professor de direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília (UniCEUB) Ivo Gico, um dos palestrantes convidados para o evento, defendeu a adoção de restrições para a gratuidade, o acesso aos serviços da defensoria pública, o fim da presunção da necessidade e da imunidade a dívidas. E o pressuposto é de que esses benefícios estimulem a judicialização. “Quando se eliminam os custos, a condição de ajuizamento fica muito mais fácil de ser satisfeita – e a condição de acordo fica muito mais difícil de ser satisfeita”, opinou. A Corte Especial do STJ avaliará, em breve, conforme o ministro Cueva compartilhou durante o seminário no CNJ, a conveniência ou não da fixação de critérios objetivos para a concessão da gratuidade da Justiça. O tema é tratado no Recurso Especial 1988687 – RJ.
CNJ