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Violência obstétrica: DPE-PR garante decisão histórica para mulher que sofreu aborto enquanto estava detida no Complexo Médico Penal
Em 2018, uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) concedeu a pessoas privadas de liberdade do Complexo Penitenciário de Curado, em Pernambuco, a contagem de pena em dobro em razão das “deteriorantes e aviltantes condições materiais de detenção impostas aos detentos”. Assim, para cada um dia de pena cumprido em unidades penais superlotadas ou sem atendimento e tratamento médico adequados e sem as condições mínimas necessárias a uma vida digna, devem ser contados dois dias de pena efetivamente cumpridos. Como o Brasil aderiu à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH ou Pacto de São José da Costa Rica), a Justiça brasileira está sujeita ao cumprimento obrigatório das cláusulas da Convenção e das decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Corte IDH.
Foi assim que, pela primeira vez, a Justiça do Paraná concedeu um pedido feito pela Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR) para a contagem da pena em dobro para uma mulher privada de liberdade que sofreu um aborto nas dependências do Complexo Médico Penal (CMP), em Pinhais, região metropolitana de Curitiba.
Ela foi presa preventivamente em outubro de 2021, quando estava com pouco mais de oito semanas de gestação e, por esta razão, foi levada ao CMP, onde mulheres privadas de liberdade que estão gestantes ficam custodiadas. Segundo relato da mulher, descrito na ação movida pela Defensoria Pública, já na primeira noite que passou no local, ela ficou sozinha em uma cela que não tinha luz, cama ou água quente. “Ficou em um colchão no chão, que estava molhado, e não havia papel higiênico ou absorvente. Como já havia sido servida a última refeição do dia, ficou cerca de 36 horas sem comer. No dia seguinte, começou a passar mal”, relata a petição.
A mulher passou a ter um sangramento e chegou a ficar desacordada. Amparada por duas detentas que a levaram até a enfermaria, ela relatou à Defensoria que foi orientada a parar de insistir em pedir atendimento e que “poderia estar morrendo” que mesmo assim não seria atendida. Neste mesmo atendimento, ela foi medicada com remédios para dor e um calmante contraindicado durante a gravidez, especialmente durante o primeiro trimestre de gestação, pois pode gerar graves complicações para o feto.
“Teria ficado por dois ou três dias sozinha, deitada e sangrando em seu cubículo, tendo sido encontrada desmaiada no chão, quando finalmente foi levada à enfermaria e colocada em uma cadeira de rodas. Então, começou a ter hemorragia intensa com pequenos coágulos, acompanhada de muita dor. Alega que a hemorragia durou ao menos 12 dias e que não teve atendimento médico nesse período. As informações fornecidas pela requerente são comprovadas pelos registros em seu histórico clínico e prontuário na unidade”, relata a Defensoria na petição, que traz, ainda, a cópia do prontuário médico da mulher, comprovando o que foi relatado. Um exame realizado seis dias após a entrada dela no CMP teve resultado negativo para gravidez. Somente após 12 dias da realização desse exame ela foi informada que já não estava mais grávida.
Pouco mais de um mês após ser levada ao CMP, a mulher passou a sentir dores na mama esquerda, onde havia uma prótese de silicone. Durante meses ela permaneceu com dores e, apesar de exames e documentos médicos realizados em fevereiro de 2022 atestarem que ela precisava realizar uma cirurgia para a remoção da prótese, a mulher permaneceu no CMP até julho de 2022, quando passou a cumprir a pena em regime domiciliar. Atualmente, ela cumpre pena em regime semiaberto harmonizado, com uso de tornozeleira eletrônica, e está em tratamento psiquiátrico e psicológico para superar o que passou na unidade penal. Ela relatou à Defensoria que desejava muito ter um filho e chegou a fazer tratamento para engravidar.
Caso foi comunicado à Defensoria por meio de carta escrita à mão
O caso chegou à Defensoria Pública em dezembro de 2021, quando os Núcleos da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP) e de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) realizaram uma inspeção no Complexo Médico Penal. A assessora de Execução Penal da DPE-PR Sabrina Monique Leal Mendes fez o atendimento da mulher com a ajuda da então estagiária de pós-graduação Laura de Gois Hartmann, atualmente também assessora da instituição. Foi ela a responsável por elaborar a petição que solicitou à Justiça a contagem de pena em dobro para a mulher em decorrência do tratamento cruel recebido na unidade penal.
“A Sabrina percebeu que era possível um pedido de cômputo em dobro do tempo de prisão porque ela foi submetida a tratamento degradante durante todo o tempo em que esteve presa, mas iríamos precisar de muita documentação para fundamentar este pedido. Depois, quando a mulher já estava em prisão domiciliar, ela buscou o nosso atendimento para apresentar os documentos necessários para que fizéssemos o pedido, nos enviou vários documentos médicos e eu pedi também uma declaração dela, narrando toda a situação, e declarações de pessoas que sabiam pelo que ela tinha passado, para podermos instruir o pedido”, conta a assessora Laura Hartmann, que, com a ajuda de toda a equipe, elaborou a ação judicial.
“Eu li vários relatórios de inspeção do CMP, como os feitos pelo Conselho Regional de Medicina e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, além dos feitos pela própria Defensoria Pública, e a situação em geral dos presos lá é muito grave. Ao saber da história dela, fiquei sensibilizada e indignada, especialmente como mulher, porque as violências do cárcere tendem a ser ainda piores com relação às mulheres, como nesse caso, em que a assistida sofreu violência obstétrica. Ela e outras presas do CMP também reclamavam, por exemplo, de falta de absorventes e de não terem acesso a trabalho e estudo – que geram remição, ‘descontando’ dias de pena – como os homens que ocupam o restante das alas do CMP. Por isso é muito importante que a decisão tenha analisado o caso a partir da perspectiva de gênero, observando uma resolução do Conselho Nacional de Justiça”.
A sentença que concedeu a contagem de remição da pena em dobro foi assinada na última sexta-feira (12) também por uma mulher, a juíza Ana Carolina Bartolamei Ramos. Em sua decisão, a magistrada levou em consideração as questões de gênero envolvidas no caso e destacou a “cristalina a violência obstétrica sofrida [pela mulher] em situação de abortamento e pós-abortamento” e a “completa negligência e descaso no fornecimento de assistência à saúde para a sentenciada […], tratando-se de grave violação de direitos humanos”. E conclui:
“Diante de todo o exposto, tendo em vista que a sentenciada […], na sua condição de mulher do sexo feminino, sofreu, quanto ao exame pré-natal, em situação de abortamento violência obstétrica e pós-abortamento, sendo ainda negligenciado atendimento médico devido em todo o período que permaneceu encarcerada no Complexo Médico Penal, configurando o tratamento degradante por meio de cumprimento de pena ilícito e antijurídico, entendo que é caso de deferimento do cômputo de pena em dobro”.
A equipe da DPE-PR responsável pelo caso celebrou a decisão, que de acordo com Laura, é possivelmente inédita por conta da aplicação desse entendimento sem que tenha havido determinação específica da Corte Interamericana de Direitos Humanos. “A Corte IDH só analisou os casos do Complexo Prisional do Curado, em Recife, e do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, no Rio de Janeiro”, explica a assessora. “Embora isso não repare toda a dor e as complicações que essa mulher sofreu, é uma forma de ‘compensação’ pelo tratamento degradante a que ela foi submetida quando esteve presa no CMP, e fará com que ela termine de cumprir a pena antes do previsto para que, então, possa retomar a sua vida de alguma forma”.
Além das assessoras Laura Hartmann e Sabrina Mendes, atuaram neste caso a coordenadora do NUPEP, Andreza Lima de Menezes, a coordenadora do NUDEM, Mariana Martins Nunes, e o defensor público Henrique Camargo Cardoso, que atua no Setor de Execução Penal de Curitiba.
A usuária da DPE-PR, que aqui chamaremos de Anita, fez questão de deixar um depoimento sobre seu caso e seu atendimento. Ela conversou com a Assessoria de Comunicação. Confira:
“Meu nome é Anita, passei por um momento delicado no processo de cumprimento da execução da minha pena, onde sofri abusos na condição de mulher, mãe e ser humano! Uma violência psicológica e obstétrica. Eu achava que, na condição em que me encontrava, não teria acesso ao à Justiça, à garantia mínima da seguridade dos meus direitos, que foram violados! E através de uma carta de socorro, que escrevi à mão e enviei à assessora Sabrina, eu recebi o socorro. Ela me acolheu, me ouviu e me trouxe esperança. Lutou por mim até vir a prisão domiciliar para que pudesse reabilitar minha saúde. Lembro como se fosse hoje a humanidade com que ela me olhou, com um olhar de fraternidade, muito humana! E lutou bravamente por mim e por outras mulheres que ali estavam. Após ouvir toda a minha história, ela me deu todo o direcionamento para que fizéssemos o pedido de contagem em dobro da minha pena.
O defensor Henrique Camargo Cardoso, a estagiária Laura Hartmann, todos demonstraram muita sensibilidade comigo, com o meu caso, com a minha dor! Perder um filho da forma como foi é doloroso!
Não vejo como uma vitória só minha! É um trabalho árduo da Defensoria, uma vitória de dezenas de mulheres que passam todos os dias por violência e são silenciadas! Eles me deram voz e vou retribuir, dando socorro e voz a outras mulheres. É enxugar gelo lutar contra o sistema, e é esse o trabalho da Defensoria todos os dias dentro de um presídio. Um sistema arcaico, retrógrado, fechado. Ver esse trabalho tão lindo só me deu garra para estender a mão para o próximo e continuar esse ciclo de levar assistência e justiça ao próximo, principalmente a mulheres, já que muitas não têm oportunidade ou têm medo de ter acesso à justiça e silenciam.
Quero continuar essa luta também por mulheres, não à violência! Estou sem palavras por todo o acolhimento e o serviço de excelência prestados, isso é imensurável. Eu fui acolhida e a justiça foi cumprida, não fui silenciada e nem esquecida!
A magistrada Ana Carolina Bartolamei Ramos, da 1ª vara de Execuções Penais de Curitiba, também me recebeu e teve toda a sensibilidade, como magistrada e mulher, de reconhecer a justiça. Gratidão a todas!”
Defensoria Pública - PR