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Artigo: Senso crítico contra falso consenso
A superação dos momentos de crise exige respostas ágeis e, muitas vezes, a adoção de remédios amargos e impopulares. Isso não significa que toda e qualquer proposta surgida em tempos difíceis deva ser sumariamente aceita como benéfica para o futuro da sociedade. Precisa-se filtrar, melhorar ou rechaçar os projetos, sempre de acordo com os valores democráticos e com a lei. Esses parâmetros de avaliação resultam de séculos de aprimoramento da ciência do direito e, no caso brasileiro, estão explicitamente estabelecidos na Constituição Federal.
É falsa a imagem de consenso construída para o projeto de reforma previdenciária apresentado pelo governo federal em momento de extrema instabilidade política. Para desconstruí-la, basta lembrar que são muitas as controvérsias jurídicas em torno das mudanças sugeridas, como as polêmicas sobre a existência ou não de um deficit da Previdência, sobre a concessão de isenções e renúncias fiscais, sobre a gestão da dívida pública e a Desvinculação das Receitas da União (DRU), para citar apenas algumas.
Do ponto de vista jurídico, o projeto do governo –que tramita no Congresso como Proposta de Emenda à Constituição 287/2016– preocupa por representar sério recuo nas conquistas de direitos sociais garantidos na Constituição, que veda o retrocesso. Não se pode criar regras excessivamente duras, reduzindo substancialmente a chance de o trabalhador usufruir do benefício pelo qual ele mesmo paga. É isso que acontece quando se impõe às cidadãs e aos cidadãos que comecem a trabalhar aos 16 anos de idade para terem aposentadoria integral somente após 49 anos de contribuição, quando completarem 65 anos de idade.
Outro ponto que merece destaque (negativo), é a proposta de adotar a igualdade etária imediata entre homens e mulheres. É sabido que, infelizmente, todas as condições econômicas, de empregabilidade e de remuneração não seguem essa lógica no Brasil. O tratamento do trabalhador rural também merece cuidado especial, com regras que atentem para realidade do campo e suas especificidades.
Como bem lembrou a presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, Jane Berwanger, é equivocado fazer comparações com países que, hoje, registram média de idade de aposentadoria superior à brasileira. Acontece que, aqui, falta trabalho, renda e um sistema de saúde que atenda plenamente a demanda da população para ter vitalidade para mais anos no mercado de trabalho.
Além das controvérsias no campo do direito, também existem divergências com relação à PEC nas áreas contábil e de gestão pública. Associações de auditores da Receita Federal, especialistas nos mecanismos de arrecadação e destinação da verba pública, têm alertado para inconsistências. Uma delas é que a arrecadação permite cobrir as despesas com as aposentadorias, mas o fato de o dinheiro ser desvinculado (aquele que não precisa ser obrigatoriamente gasto para a finalidade original) permite seu uso para outras despesas, como pagamento da dívida pública. A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) tem apresentado conta segundo a qual não existe rombo. Em 2014, segundo a entidade, sobraram R$ 54 bilhões no caixa da Seguridade Social, que inclui a Previdência.
Não se nega a necessidade de mudanças no sistema previdenciário. Mas a sociedade precisa ser esclarecida sobre as escolhas possíveis e as consequências de cada uma. A solidariedade que motivou o Estado a construir uma estrutura de direitos sociais previdenciários não pode ser açodadamente extirpada sem um profundo debate com a sociedade.
A reforma da Previdência necessária é aquela que resulte em benefícios dignos para os contribuintes, assegurando verba alimentar e bem estar social nos momentos mais duros da vida. Assim poderá ser cumprido o objetivo de erradicação da pobreza, estabelecido na Constituição como uma das determinações necessárias para o desenvolvimento do país.
O futuro da Previdência é de interesse geral. As instituições da República precisam cumprir o papel que a lei lhes atribui na fiscalização do correto cumprimento da Constituição. E as entidades civis precisam se envolver neste debate, de forma pacífica e democrática, para que, ao fim do processo, o país tenha um sistema mais justo e eficiente, não uma lei retrógrada.
Fonte: Claudio Lamachia, advogado e presidente nacional da OAB